
Para mim, a amizade é uma planta de cultivo eterno. Não abro mão dos poucos e bons amigos. Coisa que eu me orgulho nessa vida é de ter feito um punhado de grandes amigos. Punhado de se contar nos dedos, mas amigos do peito. Não gosto muito do papo de que “há amigos mais chegados que irmãos”, mas, não a nada melhor do que a companhia de um amigo. Aliás, pouca companhia para mim é melhor do que má companhia. Ser amigo é andar junto sem medo de percorrer muitíssimas milhas. Costumo medir o nível de amizade com a milhagem da carreira percorrida com o amigo. Calculo que a pior forma de solidão é a companhia de um ser invisível. Bem, vamos ao que interessa. Há cinco ou seis anos, resolvi semear uma nova amizade: ser amigo do Pr. Geresias.O Pr. Geresias era um sujeito cativante. Via-o sempre pelas ruas distribuindo sorrisos e abraços. Tinha uma postura séria e suas atitudes revelavam a maturidade conquistada ao longo dos seus quarenta e poucos anos. Sempre tomávamos um cafezinho nas manhãs de terças e quintas (quando eu pegava mais tarde no trabalho) e sempre saia pensativo, matutando sobre nosso bate-papo descontraído.
- “O Criador procura por companheiros para acompanhá-lo!” dizia ele. – “Porque tudo está maduro para a ceifa. Saiba afiar sua foice rapaz!” Eu sempre ria, com aquele sorriso amarelo, despontando o velho cinismo, “saindo pela direita” com a velha máscara de sutil amabilidade.
Mudei de emprego e foi ficando cada vez mais difícil reencontrar com o Pr. Geresias. Sentia falta de nossas conversas sobre a vida e via nele a possibilidade de um amigo. Tinha o número de sua residência. Era dezembr, dia 24, ligo para ele. Imaginei que, na véspera de Natal, um protestante fervoroso havia de estar aberto para o mundo.
Comecei assim: - “Pr. Geresias, aqui fala o Solano França. Como vai? Tudo bem?” Não havia nenhuma convivência entre nós há mais de dez meses. Mas ele respondeu vivamente: - “Ah, Solano, tenho pensado em você! Agora mesmo estava orando por você. “Pensando em mim, orando por mim.” Prossigo: - “Pr. Geresias, estou ligando para desejar todas as felicidades, a você e a sua família”, etc.,etc., etc. Por um momento, tive vontade de contar-lhe o seguinte: - “Pr. Geresias, quando eu era criança chorava muito em um conto chamado O PINHERINHO de Hans Andersen. Nesse conto um pinheirinho filhote sonha em ser mastro de navio quando for um pinheirão, igual aos outros da floresta. O senhor conhece esse conto?”
Todavia, não falei do tristonho conto. Um ano depois, no mesmo dia 24 de dezembro, teclo novamente. E o Pr. Geresias responde: - “Ah, Solano, acabei de orar por você.” (Era um santo! Não esquecia de mim em suas orações). Mais uma vez, não contei que quando criança chorava com a historia do pinheirinho. E, assim, Natal após natal, não lhe faltei com o meu sofrido telefonema.
Pensava o seguinte: - um bom cristão, como o Pr. Geresias, há de ter Deus enterrado em si como um sino. Ele havia de imaginar que eu corria, arquejante, atrás de um amigo, eternamente atrás de um amigo. E, no entanto, eu sentia, com uma nitidez cruel, inapelável, que o Pr. Geresias orava por mim e não era meu amigo. Simplesmente, não era meu amigo.
No seguinte natal, insisto em ligar para o Pr. Geresias. Estou cada vez mais convencido de que o amigo é um momento de eternidade. Antes de ligar, passo um bom quarto de hora sonhando diante do telefone. Eu queria ter, com o Pr. Geresias, uma conversa de total sinceridade. Imaginava dizer algo do tipo: - “Pr. Geresias ore menos por mim. Se quiser, não ore nada. Mas seja meu amigo. E, se caso insistir em orar, vamos fazer uma permuta: o senhor ora por mim e eu oro por ti.”
Juro que daria tudo para ver ilustríssimo Pr. Geresias, líder religioso respeitado, presidente do conselho de pastores evangélicos da cidade, mendigando as minhas simples orações, com a humildade de um santo. Imaginei o velho carola a suplicar, do fundo do seu desespero: - “Irmão, ore por mim. Eu preciso ser salvo. É a minha salvação que está em jogo.” Se ele falasse assim, trêmulo de pavor, eu responderia: - “Pr. Geresias vou começar agora mesmo. Não desligue. Quero que o senhor ouça a minha oração.” E assim eu salvaria o Pr. Geresias Apolônio Brito e seríamos eternamente amigos.
Bem, me lembro do nosso último 24 de dezembro. Ouço a voz do Pr. Geresias: -“Alô?” Imagino: - “Vai repetir tudo, igualzinho como da outra vez.” Digo: - “Pr. Geresias, é o Solano, Solano França. Tudo na paz?” Foi de uma larga e cálida efusão: - “Ah, Solano, acabei de orar por você.” Tomo um susto. Ele insiste: - “Tenho pedido muito por você.” Aproveito uma pausa e dou o meu recado: - “Vim desejar-lhe todas as felicidades, etc., etc.”
(E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha oração). Baixa em mim o tédio, aliás, tudo tende ao tédio. Começo a crer que o amigo é uma impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: - “Ah, Solano, você aí nessa lama!” Exatamente: lama. Começo a ter medo do resto. Pr. Geresias dizia “lama”, familiarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e até estimável. Tive a idéia de responder-lhe: - “Minha lama vai bem. E a sua, Pr. Geresias?”
Acabei com aquilo sumariamente: - “Até logo, passar bem.” Desliguei e confesso: como um desgosto do Natal e até um tédio (tudo tende a ele) retrospectivo do conto do pinheirinho. Nunca mais telefonei, nunca mais. Mas, ao relembrar o episódio, imagino um mundo onde a tias se cumprimentam nas ruas assim: - “Como tem passado a sua lama?” Eis o que o Pr. Geresias, na sua imodéstia de santo, não percebe – “qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos, sim pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a lama começa a exalar o tifo, a malária e a paisagem apodrece.” Viva Nelson!
Dedicado aos invisíveis.
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